Há seis anos, descoberta em um campeonato nacional de futsal universitário, a sergipana Lígia Montalvão foi contratada pelo Kindermann, de Caçador (Santa Catarina), onde foi vice-campeã brasileira (2014) e campeã da Copa do Brasil (2015) de futebol feminino. A volta aos gramados se deu no fim de 2019, após longo período jogando somente nas quadras. A disputa do Estadual de Sergipe pelo Estanciano chamou atenção do time campeão, Grêmio Santos Dumont, que a trouxe para ser capitã na disputa da segunda divisão do Brasileirão Feminino (Série A2) deste ano.
Só deu tempo para estrear contra o Esmac (Pará) em Belém, no último dia 14 de março. A pandemia do novo coronavírus (covid-19) paralisou o campeonato por tempo indeterminado. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) anunciou um repasse de R$ 19,12 milhões a clubes e federações como apoio para que pudessem “cumprir seus compromissos com jogadores e jogadoras” durante o período. Do total, R$ 1,8 milhão foi destinado aos times da Série A2 feminina, R$ 50 mil por equipe.
O problema de Lígia e das companheiras do elenco começa aí. “A CBF mandou a verba referente a duas folhas salariais. Quando o dinheiro chega, ele entra na conta do clube e quem tem é acesso é o presidente. Fizemos uma reunião entre nós, atletas, e decidimos dividir igualmente [25 jogadoras e cinco integrantes de comissão técnica], independente do salário de cada uma. Dias depois, o presidente disse que seria R$ 500 por atleta, isso se a gente quisesse”, garante a capitã à Agência Brasil.
“Depois, ele lançou uma outra proposta de pagar R$ 1 mil para cada, que daria R$ 30 mil do valor [repassado pela CBF]. Perguntei sobre os outros R$ 20 mil. Ele disse que seria para formar uma nova equipe. Mas esse dinheiro foi dado para arcar com os nossos compromissos. Queremos o valor correto”, diz Lígia, que revelou a história, primeiramente, em vídeo publicado pelo perfil Diário FFeminino no Instagram.
Os vencimentos do elenco vinham sendo mantidos por um empresário local, chamado Célio França. À Agência Brasil, ele afirma não querer “um centavo” do montante destinado ao Santos Dumont e defende as atletas. “Fizemos denúncia ao Comitê de Ética da CBF”, diz o empresário, que foi presidente do Confiança, clube sergipano atualmente na Série B.
O caso chegou, de fato, ao conhecimento da confederação. Segundo o supervisor de competições de futebol feminino da entidade, Romeu Castro, um membro da CBF falou com o presidente do Santos Dumont na última quinta (23). “Ele informou que fará um aporte às meninas. Parece-me que está havendo uma confusão entre o acordo que há entre o empresário com o clube e a forma que o clube queria fazer a gestão desse dinheiro. Aí é uma questão complicada. Talvez, um erro na formulação do acordo para esse time representar esse determinado clube acaba tendo uma influência negativa agora”, avalia Castro à Agência Brasil.
“Óbvio que o clube pode utilizar uma parte dos recursos para despesas também relacionadas à modalidade, como comissão técnica, custeio de passagens para as meninas voltarem, que era uma coisa não prevista na crise, mas o lado humano tem sua prioridade. Não podemos entrar em situações que são particulares entre clube e empresário. Essas relações têm que ser melhor definidas para que não haja esse tipo de problema”, diz Castro.
Enquanto isso, a indefinição preocupa as jogadoras, especialmente pela realidade de algumas delas. Segundo Célio, 15 atletas são de fora de Sergipe, sendo oito da Bahia, cinco de Alagoas, uma de Roraima e uma de Minas Gerais. “Muitas são de famílias muito, muito humildes, que chegaram a não ter o que comer. Eu e minha família chegamos a ajudar, porque muitos pais não estão podendo trabalhar por causa da pandemia”, afirma Lígia. “Mas, a situação está bem complicada. Se não está jogando, não entra dinheiro”, lamenta a capitã.
A Agência Brasil tenta contato com o presidente do Santos Dumont, identificado como Jó, desde a última quarta (22). Embora tenha visualizado as mensagens no Whatsapp, ele não as respondeu até a publicação da matéria.
Monitoramento
O caso do Santos Dumont não é único. Atletas de outras equipes da Série A2 (que, na maioria, como a equipe sergipana, não têm vínculos profissionais) também procuraram a CBF, mesmo sem necessariamente registrar denúncia. Uma queixa formalizada foi a das jogadoras do Audax, da primeira divisão feminina, que, segundo Romeu Castro, já foi resolvida. Aos clubes da Série A1 a entidade destinou R$ 1,92 milhão, sendo R$ 120 mil por agremiação.
A história foi revelada pelo blog Dibradoras na última segunda (20). Nesse mesmo dia, equipe e jogadoras se acertaram para o pagamento da bolsa-auxílio (as meninas do Audax, a maior parte oriunda de projeto social, não têm vínculo profissional) referente aos 15 dias de março pós-paralisação, abril e maio. Superintendente de futebol do time paulista, Adelsio Reis diz à Agência Brasil que o aporte chegou no último dia 15. “Esperávamos um ofício com o direcionamento. A orientação veio por telefone, em contato com o dono do Audax”, informa.
“Nesse ponto, houve uma confusão interna deles, felizmente solucionada. A comunicação oficial da CBF foi dirigida a todos pelo site. Aparentemente não havia chegado ao conhecimento do Gustavo [Teixeira, filho do proprietário do clube], que, conversando comigo, prontamente resolveu a questão”, afirma Castro.
Desafio
A Federação Internacional de Jogadores de Futebol (FIFPro) fez um alerta recente sobre o impacto da pandemia do novo coronavírus na sustentabilidade do futebol feminino se algumas recomendações não fossem seguidas. Entre elas, conforme documento publicado pela entidade, “garantir que os investimentos pré-crise sejam garantidos e não sejam retirados” e “exigir que nenhuma pessoa com base em seu sexo seja excluída de qualquer incentivo financeiro, programa de remuneração ou atividade que receba assistência financeira”.
“O futebol é sustentável?”, indaga à Agência Brasil a ex-capitã da seleção brasileira feminina Aline Pellegrino. “É uma questão importante que esse auxílio emergencial da CBF levanta. O futebol é um só e, em momentos de crise, todos serão afetados. Mas, ao pensar estratégias para esse tipo de situação, é preciso fazer uma distinção entre o futebol masculino e o feminino. O auxílio emergencial é importante, mas, para o futebol feminino, a forma de implementar essa mesma medida, talvez precisasse de uma estratégia diferente”, avalia.
Hoje diretora da modalidade na Federação Paulista de Futebol (FPF), a ex-zagueira menciona a importância de departamentos de futebol feminino na “cadeia produtiva” do esporte. “Seja em clube, federação ou confederação. É dentro deles que os alinhamentos serão feitos”, destaca Aline, explicando o procedimento adotado em São Paulo. “Realizamos uma videoconferência com os 16 times participantes do nosso Estadual Feminino para entender a situação de cada um, porque são equipes com características diferentes. Eles vão responder a questionários e, a partir das respostas, vamos traçar um panorama da modalidade e quais medidas e estratégias serão tomadas diante desse cenário”, finaliza.
Edição: Fábio Lisboa